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26 de abril de 2014

Fala de poeta e não de mestre

Que pode um homem? perguntava Monsieur Teste.
Isso é interrogar o homem moderno. No mundo, a linguagem
é poder por excelência. Aquele que fala é o poderoso
e o violento. Nomear é a violência que afasta o que é nomeado,
para o ter sob a forma cômoda de um nome. Nomear
é o que faz do homem essa estranheza inquietante
e perturbadora, que estorva os outros seres vivos e até
mesmo os deuses solitários que dizem ser mudos. Nomear
só foi dado a um ser capaz de não ser, capaz de fazer
desse nada um poder, e desse poder, a violência decisiva
que abre a natureza, que a domina e força. É assim
que a linguagem nos joga na dialética do mestre e do escravo,
que nos obceca. O mestre adquiriu direito à fala porque
foi até o extremo do risco de morte; só o mestre fala,
uma fala que é comando. O escravo apenas ouve. Falar, eis
o que é importante; aquele que só pode ouvir depende
da fala, e vem somente em segundo lugar. Mas a escuta,
o lado desfavorecido, subordinado e secundário, revelase
finalmente como o lugar do poder e o princípio da verdadeira
autoridade.
Somos tentados a crer que a linguagem do poeta é
a do mestre. Quando o poeta fala, é uma fala soberana,
fala daquele que se lançou no risco, diz o que jamais foi dito, 
nomeia o que não entende, apenas fala, de modo
que ele também não sabe o que diz. Quando Nietzsche
afirma: "Mas a arte é terrivelmente séria! ... Nós vos cercamos
de imagens que vos fazem estremecer. Temos esse poder! Tapai
as orelhas: vossos olhos verão nOssos mitos, nossas maldições
vos atingirão!", isso é fala de poeta que é fala de mestre,
e talvez seja inevitável, talvez a loucura que se apodera
de Nietzsche esteja ali para fazer da fala mestra uma fala
sem mestre, uma soberania sem escuta. Assim o canto de
Holderlin, depois do estouro violento do hino, volta a ser,
na loucura, o da inocência das estações.
Mas interpretar assim a fala da arte e da literatura
é afinal traí-la. É desconhecer a exigência que nela reside.
É buscá-la, não mais na fonte, mas quando, atraída pela
dialética do mestre e do escravo, ela já se tornou instrumento
de poder. É preciso pois tentar situar, na obra literária,
o lugar da relação nua, estranho a todo mando e a
toda servidão, linguagem que fala somente àquele que não
fala para ter ou para poder, para saber e possuir, para se
tornar mestre e mestre de si mesmo, isto é, a um homem
muito pouco homem. É certamente uma busca difícil, embora
estejamos, pela poesia e pela experiência poética, no
bom rumo dessa busca. Pode até mesmo ser que nós, homens
da necessidade, do trabalho e do poder, não tenhamos
os meios de alcançar uma posição que nos permita
pressentir sua aproximação. Talvez se trate de algo muito
simples. Talvez essa simplicidade esteja sempre presente
em nós, ou pelo menos uma simplicidade igual.

Blanchot, Maurice. O livro por vir. p.45-46

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